sábado, 19 de outubro de 2019

A cumplicidade do poder público com a defesa das touradas e do pensamento reaccionário ou fascista




A cumplicidade do poder público com a defesa das touradas e do pensamento reaccionário ou fascista

Não é novidade para ninguém o facto de que os defensores mais veementes das touradas, desta incompreensível excepção à moderna legislação que defende os direitos dos animais e seu bem-estar, vivem num mundo muito afastado da realidade da nossa época.

E as ideias que defendem resultam cada vez mais chocantes para a maioria das pessoas: O culto à violência. O abuso cruel e sem medida dos animais. O gosto pelo sangue e pela morte. A agressão gratuita e covarde contra o mais fraco. A destruição de um ser vivo vista como motivo de festa e celebração. A barbárie defendida como estado mais nobre do homem. O sofrimento de determinados seres convertido no prazer de outros. A ritualização controlada da violência sobre seres indefesos vista como falsa forma de segurança…

A defesa de todo este conjunto de ideias, de carácter claramente retrógrado, mais próprias de épocas pretéritas, envergonha as sociedades modernas do século XXI e revolta cada vez mais a população.

Agravando a situação, é por mais evidente que o mundo das touradas e todo o seu ideário associado apresentam ligações profundas com o pensamento político mais reaccionário ou fascista. A este respeito, vale a pena relembrar as 14 características que Umberto Eco, na sua obra “Cinco escritos morais”, utilizava para identificar aquilo que ele chamava neofascismo ou fascismo eterno, e que poderiam resumir-se da forma seguinte:

1) O culto da tradição e do tradicionalismo. 2) A recusa da modernidade. 3) O culto da acção pela acção, onde o pensamento e a cultura são vistos como uma forma de castração. 4) A rejeição de qualquer tipo de críticas, sendo o desacordo considerado como uma traição. 5) A potenciação do medo à diferença e do racismo. 6) O apelo às classes sociais frustradas vítimas da crise ou da humilhação política. 7) O culto ao nacionalismo, definido pela ameaça de supostos inimigos internacionais e nacionais. 8) A ideia contraditória de que o inimigo é suficiente forte para humilhar-nos e suficientemente fraco para ser derrotado. 9) A ideia de que o objectivo da vida é a luta e a guerra permanente, sendo o pacifismo um conluio com o inimigo. 10) A defesa duma sociedade elitista e hierárquica, organizadora dum povo superior. 11) O culto do heroísmo e da morte, que é considerada a melhor recompensa para uma vida heróica. 12) A defesa do machismo, escape para um heroísmo continuamente frustrado. 13) O povo concebido como uma entidade monolítica que exprime uma única vontade comum, da qual o líder é seu único intérprete. 14) Utilização de um léxico pobre incapaz de suportar raciocínios complexos ou críticos.

Vale a pena pegar nestas características para as comparar com as que regem habitualmente no mundo mais purista e genuíno das touradas.

No mundo das touradas é defendida a tradição e o tradicionalismo sempre por cima da razão. Foge-se a todo tipo de modernidade. Foge-se ao pensamento livre e à evolução da cultura. Não é aceite nenhum tipo de críticas externas ou internas, que são recebidas com extrema violência. Não é aceite que as pessoas possam pensar de forma diferente e actuar, por exemplo, a favor da proibição das touradas. Apela-se, a integrar nas suas filas, aos sectores da sociedade culturalmente mais desfavorecidos. As touradas são vistas como uma bandeira de identidade do povo, cuja continuação está em perigo, ameaçada por inimigos estrangeiros e da própria nação contra os quais é preciso lutar até conseguir a sua derrota.

A luta e o sangue são a própria essência da tauromaquia. O objectivo do homem é demonstrar o seu heroísmo lutando contra animais, que são idealizados como o inimigo, mas muito mais fáceis de humilhar, torturar e vencer. A morte é a glória máxima do lutador, e mesmo também, involuntariamente, da vítima. O pacifismo e a defesa dos animais são a negação da luta e devem ser perseguidos. O machismo domina o mundo das touradas, sendo a via mais fácil e covarde para dar escape à frustração permanente de homens que quereriam ser vistos como heróis. Os defensores das touradas são os únicos intérpretes válidos das essências do povo, que deveria defender em bloco a continuidade da tauromaquia. A linguagem da tauromaquia é simplista, confusa e emocional, identifica propositadamente as palavras com a sua própria antítese e nega a validade de todos aqueles conceitos ligados à razão e ao pensamento racional.

Em resumo, quase todas as características que definem o pensamento político neofascista têm um reflexo claro no mundo da tauromaquia e no ideário que defendem os seus mais fanáticos adeptos.

É o momento, portanto, de nos perguntarmos pelo motivo pelo qual o poder público, contra qualquer senso comum, defende e protege a continuação das touradas, o seu mundo sádico e cruel e o seu ideário retrógrado tão próximo ao fascismo.

De que forma, ao amparo do ordenamento constitucional, é possível defender que a liberdade de umas determinadas pessoas consiste em torturar de forma sangrenta um animal e que o dever de todas as outras pessoas é tolerar de forma impassível este crime abjecto.

De que forma é impedida a necessária evolução do conjunto da sociedade, impedindo ou obstaculizando esta evolução com a defesa duma tradição ou de umas tradições por mais infames, vergonhosas e retrógradas.

De que forma é promovido e apoiado acriticamente todo um conjunto de valores reaccionários ou simplesmente fascistas, contra os quais historicamente se alçaram todos os actuais preceitos constitucionais e as mais modernas legislações.

Em resumo, é o momento de nos perguntarmos pelo motivo da inconfessável cumplicidade do poder público, e de quem o representa, com a abjecta continuação da prática das touradas.


Tiago Pavão